quinta-feira, 1 de outubro de 2009


INDECENTE

Estrias de luz entravam pela janela escrevendo na parede que mais um dia terminava. Não conseguiu lembrar o motivo de estar ali. Faltou-lhe o ar e ele estendeu a mão para acionar a campainha.
...
Inspirou uma grande quantidade de ar, como se quisesse beber cada estrela daquela noite indecente de tão linda. Indecente. Era este para ele o maior elogio que qualquer coisa que fosse elogiável poderia receber. "Ahhhh...." – gritou sabe-se para quem naquela rua deserta. "Uhhhhh...'' respondeu um bêbado ao longe. "Ô raça unida esta nossa, hein?" gritou depois de uma sonora gargalhada. Não distinguiu direito a resposta, provavelmente um desaforo, pois já dobrara a esquina chegando à rua da praia. A lua, agora imensa dominava toda a paisagem despejando seu licor prateado pelo mar... Não entendia a tanta alegria que sentia. Deveria ser diferente afinal de contas acabara de tomar um fora. E depois do fora, tomara muitos e muitos copos de vinho barato. Deveria estar deprimido e triste ainda mais com uma noite tão... indecente! Mas não. Sabia que agora estava livre para sofrer de novo com uma nova idéia de amor. "Pois amor nada mais é do que uma idéia" . raciocinou como podia. "Realizado, perdem-se os argumentos, a idéia passa a ser realidade.. E a realidade geralmente destrói as melhores idéias". Decerto nesta conclusão residia também algum rancor político. "Dane-se! Será que minha revolta não pode ser diferente? Afinal quem sou eu para morrer de amor? Quero mais é morrer de rir..." E riu mesmo, conseguindo extrair alguma graça de seu sofrimento que neste ponto não sabia mais se era ainda sofrimento.

Conhecera Maria há duas semanas, e estava inequivocamente apaixonado. Alimentou uma quimera por duas semanas, mas a jovem na ânsia de aventura cansou-se do pobre rapaz dado aos livros. O filho do delegado, viajado e sedutor encantou mais a garota simples, que do mundo queria mais, muito mais do que ser indecentemente comparada à lua e às estrelas.

E agora, sentado na mureta de uma praia desta pequena cidade litorânea, que pode ser aqui perto, ou lá longe, ele se questionava por estar tão feliz. Não a amava? Decerto... Mas estranhamente não era uma sensação de perda que o dominava, o que seria então?

Saltou da mureta. A lua, indecente ainda, continuava a despejar sua prata no mar. Caminhou pela orla até chegar na ponta da praia. À esquerda, mais adiante, começaria um território que para ele ainda era desconhecido. Proibido... Depois das casas pobres, começava a zona de meretrício da cidade. Ele ainda não conhecia mulher. Andou curioso e atento, até que uma delas, cuja idade não se poderia jamais adivinhar lhe despertou o interesse. Foi com ela, e uma nova vida se abriu aos seus sentidos. Nada que se comparasse às carícias roubadas, aos beijos rápidos. A mulher sem pudor mostrou-lhe a porta de um mundo de sensações que ele sequer sabia existirem. Acostumada aos homens rudes, ao jogo rápido, encantou-se com o rapaz, extraiu-lhe confissões, e as fez também. Nada quis cobrar, sentia-se feliz. Mas o proibiu de voltar lá. Ao despedir-se estava apaixonada. Não entendeu quando ele acariciou-lhe delicadamente o rosto em despedida, sussurrando com ternura que ela era indecente.
Ele decidiu então que aquele lugar em que vivia não mais lhe bastava. Escreveu ao padrinho na cidade grande, e para lá se foi. Empregou-se. Estudou. Formou-se jornalista. Tornou-se escritor. Amou muitas vezes.

Anos depois, de volta à terra natal reencontrou família e amigos. A mulher da vida mudara-se dali e ninguém mais dela sabia. Maria, agora casada com o filho do delegado em nada lembrava a doce vilã que o lançara à fortuna. Depois de quase duas décadas ela nem lembrava mais das duas semanas que mudaram a vida do homem que lhe apertava a mão e acariciava o cabelo de seus filhos.

Passou por lugares que amara, nas casas que freqüentara, na praia onde outrora namorara. Nada mais era igual. Até a lua tão indecente derramando ainda prata no mar, parecia ter mudado.

Figura na cidade, falado nas rodas de conversa quando aparece no jornal. Filho da terra.

Foi embora e não quis mais voltar, queria ter na cabeça que nada mudou. Veio o amor maduro, vieram os filhos e vieram os netos.
...
Lá fora uma noite indecente. A luz do sol ainda tingia de vermelho o horizonte, e vermelho ainda era o licor da lua, derramado no firmamento. Tempo bom para um passeio.

Nem notou quando ela abriu a porta... Tentou ver-lhe o rosto. As pernas há alguns meses já imóveis o surpreenderam erguendo-o quando ela lhe estendeu a mão. Desligou-se dos tubos e dos aparelhos, estranhando o fato de respirar tão bem. Foi então que viu a face dela. "Engraçado" – pensou – "Os grandes momentos da minha vida acontecem quando estou ao lado de uma mulher indecente de linda..."

E foram embora, sem olhar para trás.