segunda-feira, 24 de novembro de 2008

A anti-motorista de ônibus


O que mais estranhei quando cheguei ao Rio de Janeiro foi o transporte coletivo.
Minha vida inteira sempre andei de ônibus, aos oito anos pegava o Estação São Caetano a duas quadras da minha casa e descia em frente à escola, me sentindo um adulto.

Como até a idade de hoje nunca priorizei no meu orçamento um saving para comprar um automóvel, reuni uma considerável milhagem pelas catracas da vida. Nunca me incomodei muito, embora vez por outra um ônibus mais lotado ou um motorista de mau-humor fizessem com que eu amaldiçoasse os cd´s, os livros e as cervejas que sugavam meus recursos me impedindo de ter o suficiente para comprar um possante ainda que bem velhinho.

Pois bem. Mudei-me para a cidade maravilhosa. E foi na zona sul do Rio de Janeiro que eu adquiri um trauma de transporte coletivo que beira a neurose.

Já escapei uma centena de vezes de ser atropelado porque o motorista passa na outra faixa ignorando solenemente o rebanho que aguarda no ponto. São capazes até de buzinar dando tchauzinho. E entre perder a vida e o emprego numa sociedade como a nossa, a segunda opção pode ser pior pois a primeira ainda quitaria meu apartamento, e eu por diversas ocasiões me atirei por entre os carros entrando, à base de pancadas na porta, em um veículo guiado por criaturas que me diziam que "se parar em tudo o que é ponto não chego hoje no ponto final". Não sei se o que choca mais é o cidadão pensar isso realmente ou a cara de pau em assumir este pensamento.

Outra situação constrangedora é quando metros adiante do ponto onde você foi hediondamente abandonado, há um sinal que, alegria, fecha. Você sai ensandecido e arrependido de sua trajetória sedentária (desta vez o dinheiro da cerveja não importa, mas as horas que você deixa de se exercitar para bebê-la cobram seu tributo), na tentativa nem sempre bem sucedida de alcançar o alvo. Quando vitorioso e sem fôlego você entra, é com alívio e gratidão aos céus que você se joga na poltrona como se fosse uma jacuzzi morninha, e não tem pique nem para reclamar. Se, ao contrário, a besta-fera arranca dois segundos antes de você alcançá-la fazendo com que, num ato de desespero irracional você ainda grite para que o esperem (ainda que ouvissem...) a derrota e o vexame tomam conta de sua volta triunfal ao ponto onde durante mais meia hora você vai esperar pelo próximo algoz, mentalmente traçando uma estratégia para não deixá-lo passar e esboçando um e-mail para todos os meios de comunicação que você jamais enviará.

Sem contar as duas vezes em que o ônibus no qual eu estava bateu no veículo da frente. Na primeira vez eu peguei um táxi até o trabalho, e na segunda, dolorido da pancada entrei no próximo carro da mesma viação e linha (que quase bateu também no trajeto) depois de muito ter que brigar com o motorista que não queria me deixar subir sem pagar a passagem. Por sorte um dos fiscais da empresa, feliz por verificar que eu por conta de meu atraso seria um boletim de ocorrência a menos contra a empresa (que fiquei sabendo depois, pagou indenizações de até quatro mil reais às vítimas do acidente) me possibilitou a entrada.

É nesta realidade em que vivo, e é essa realidade que me fez ficar surpreso hoje ao voltar do Leblon para Copacabana. Vim de carona com uma amiga do trabalho até a Rua José Linhares, onde desci quase na esquina com a Ataulfo de Paiva. Vendo que meu ônibus estava parado no sinal, bati na porta que se abriu e entrei. A motorista, uma mulher gentilmente alertou que o sinal abriu e pediu que eu tomasse cuidado pois colocaria o veículo em movimento.

Só isso já me deixou espantado. No caminho a motorista viu uma vítima abandonada pelo ônibus da frente do nosso, parou no ponto, pediu que ele subisse, e ultrapassou o motorista insensível parando adiante de modo que ele não pudesse prosseguir e o feliz resgatado, que desceu agradecidíssimo, pudesse pegar o ônibus certo para o seu destino. No caminho, ela avisou um motorista de táxi que emparelhou conosco que a porta traseira de seu carro estava aberta. E ao contrário de seus colegas que param em fila dupla para o desembarque de passageiros colocando assim em risco suas vidas, parava no meio fio sempre, ainda que tivesse que avançar mais alguns metros por conta de veículos parados no ponto.

Pensei na possibilidade de as empresas só contratarem motoristas mulheres, uma vez que elas têm um instinto de preservação e proteção mais aguçados. Mas sei que isso é um pensamento que limita ao gênero uma característica que é do caráter. Há motoristas homens muito bons também. Esta alma boa que me conduziu até meu ponto em Copacabana, comentou com o cobrador que iria prestar no ano seguinte o vestibular para Faculdade de Rádio e TV ou Psicologia. Uma conquista para ela e uma grande perda para as ruas da cidade.

Pensei em mandar um e-mail para a viação elogiando a conduta da moça. Mas baseado pelo que eu vejo, ela deve ser uma exceção e eu na tentativa de ajudar poderia causar um prejuízo. Que ela passe no vestibular. Que mais motoristas como ela surjam por aí. Ou anti-motoristas. Ou anjos da guarda.

imagem - João Werner "Parada de Ônibus"
Hoodoo Gurus "Come Anytime"

Nenhum comentário: